sábado, 4 de junho de 2016

Coração de Jesus, Salvação dos que Esperam em Vós

Pois não há, debaixo do céu, outro nome dado aos homens pelo qual devamos ser salvos. (At 4,12)
Certamente, ao incluir na Ladainha do Sagrado Coração de Jesus esta invocação - diz-nos Padre Paschoal Rangel - tinham-se presentes as promessas que Jesus fizera a Santa Margarida Maria.
Não se trata de promessas balofas ou piedosas enganações. O Papa Leão XIII, que certamente não pode ser apontado como um devoto ingênuo (ao contrário, passou à História como uma das inteligências mais agudas do seu tempo), acreditou seriamente nelas e delas falou em sua Encíclica [ Annum Sacrum; versão em Língua Portuguesa], ao elevar à categoria de Festa de Primeira Classe a celebração litúrgica do Coração de Jesus: "A fim de que os homens seguissem, com mais alegre disposição, os desejos de seu Amor admirável e total, Jesus os convida e atrai com importantes promessas que Ele mesmo lhes faz". 
Pois esse Jesus, fora de quem não há salvaçao (At 4,12); que é o Caminho, a Verdade e a Vida (Jo 14,6); que pôde afirmar: "Eu sou a luz do mundo; aquele que me segue, não anda nas trevas, mas terá a luz da vida" (Jo 8,12); que disse ainda: "Eu não vim julgar o mundo, mas para salvá-lo" (Jo 12,47); esse Jesus mostrou, nas suas aparições à vidente de Paray-le-Monial, especialmente nas famosíssima revelação de "uma sexta-feira, depois da Comunhão", o que ele estava disposto a realizar por aqueles que fossem devotos do seu Sagrado Coração. Suas promessas se referem todas, de uma ou outra forma, à salvação. Mas especialmente a que se chamou a "grande promessa": ele não permitirá que aqueles que comungarem em nove primeiras sextas-feiras de nove meses consecutivos, venham a morrer em pecado mortal. A humilde santa teve medo de equivocar-se e à frase: "foram ditas estas palavras à sua indigna serva", acrescentou uma restrição: "se esta não se engana". A verdade é que, se, por um lado, não se pode aceitar a promessa como uma espécie de "seguro de vida eterna" para quem cumprir materialmente, mecanicamente, a prática externa das comunhões, não deixa de ser verdade que, para quem faz sincera e generosamente essas comunhões, com intenção de honrar e oferecer um ato de reparação ao Sagrado Coração, tudo indica que Jesus não estava blefando, e Santa Margarida Maria não se terá enganado. 
Um pingo de incerteza, no caso, a "graça da dúvida" só pode fazer bem. "Ninguém sabe se é digno de amor ou de ódio" - diz o Eclesiastes (Ecl 9,1). No Concílio de Sens, em que se condenaram os erros de Abelardo, advertia-se: " O auxílio salvífico de Deus nos atrai, não é tamanho que não se possa a ele resistir". 
A ação salvadora do Coração de Jesus nos corações que a ele se entregam amorosamente, na certa encontrará caminhos de nos fazer amá-lo livremente. Há um misterioso jogo de amor entre a graça divina e a liberdade humana. Santos e teólogos sempre se sentiram simultaneamente fascinados e aturdidos por esse "mistério", onde, talvez mais que em muitos outros, deparamos com o sagrado, ao mesmo tempo "numinoso" (isto é, de um sobrenatural que faz tremer, mais "pressentido" no temor, na admiração, na adoração, do que em algum tipo de conceito). São Paulo, que, entretanto, confiava tanto em Cristo, nos exortava a trabalhar em nossa salvação "com medo e temor" (Fl 2,12). 
E Santo Agostinho ensinava que, "quando defendemos o livre arbítrio, fica parecendo que negamos a graça de Deus; quando, porém, se afirma a graça de Deus, parece que se rejeita o livre arbítrio. Mostrando "como" Deus nos atrai para o bem e "como" a graça é de tal modo necessária que, na ordem da salvação, sem ela nada podemos fazer e "como" seu influxo é que cria a possibilidade de agirmos, mas de agirmos "livremente", o mesmo Agostinho escreveu: "Quem seria arrastado, se já quisesse? Contudo, ninguém vai, se não quiser. Somos, pois, por meios admiráveis, arrastados a querer, por aquele que sabe agir por dentro no coração dos homens; somos arrastados, não a crer sem querer (isto não é possível), mas a passar de  homens que não querem a homens que querem acreditar". 
Pois bem, é no contexto desse mistério do agir de Deus no coração dos homens que precisamos entender as promessas do Coração de Jesus, especialmente a "grande promessa" da "perseverança final", isto é, da conversão ainda que seja na última hora, o dom supremo de morrer em estado de graça e amor de Deus.Aqueles que fizerem as nove comunhões em nove primeiras sextas-feiras por amor a Cristo e como resposta ao pedido de reparação de nosso Salvador; quem se esforçar por viver como Deus  quer, pode confiar sim. E se entregar. Mesmo que permaneça o mistério.
Meditação de São João Paulo II:

1. Nesta hora do Angelus, paremos instantes para refletir sobre a invocação da ladainha do Sagrado Coração que diz: "Coração de Jesus, salvação dos que esperam em vó, tende piedade de nós".
Na Sagrada Escritura volta constantemente a afirmação de que o Senhor é "um Deus que salva" (cf Esd 15,2; Sl 51,16; Sl 79,9; Is 46,13) e que a salvação é dom gratuito de seu amor e de sua misericórdia. O apóstolo Paulo, num texto de grande valor doutrinal, afirma de maneira incisiva: Deus "deseja que todos os homens sejam salvos e cheguem ao conhecimento da verdade" (2Tm 2,4; 4,10).
Essa vontade salvífica, que se manifestou em tantas intervenções admiráveis de Deus ao longo da história, atingiu seu ponto culminante com Jesus de Nazaré, Verbo encarnado, Filho de Deus e Filho de Maria. Nele, de fato, se realizou plenamente a palavra dirigida pelo Senhor a seu "Servo": "Eu farei de ti a luz das nações para que minha salvação atinja as extremidades da terra" (Is 49,6; Lc 2,32).

2. Jesus é a epifania do amor salvífico do Pai (Tt 2,11; 3,4). Simeão exclamou, com o menino Jesus nos braço: "meus olhos viram tua salvação" (Lc 2,30).
Em Jesus tudo foi estabelecido em função de sua missão de Salvador: o nome que ele traz ("Jesus" significa "Deus salva"), as palavras que pronuncia, as ações que realiza, os sacramentos que institui.
Jesus é plenamente consciente da missão que o Pai lhe confiou: "O Filho do homem veio procurar e salvar o que estava perdido" (Lc 19,10). De seu Coração, isto é, do mais íntimo de seu ser, nasce a atividade para a salvação do homem, que o conduz, como doce cordeiro, ao Calvário, o leva a estender seus braços na cruz e a "dar sua vida em resgate por uma multidão" (Mc 10,45).

3. Podemos pois repousas nossa esperança no Coração de Cristo. Esse Coração, diz a invocação, é a salvação dos que creem nele. O Senhor, que na véspera de sua paixão pediu que os apóstolos tivessem confiança nela - "que vosso coração não se perturbe! Crede em Deus, crede também em mim" (Jo14,1) -, pede-nos hoje ter plena confiança nele. Ele nos pede isso porque nos ama, porque por nossa salvação teve o coração traspassado, os pés e as mãos cravados. Quem crê em Cristo e crê no poder de seu amor renova em si a experiência de Maria Madalena, como nos é apresentada na liturgia pascal: "Cristo, minha esperança, ressuscitou" (Domingo de Páscoa, sequência).
Refugiemo-nos, pois, no Coração de Jesus! Ele nos oferece uma palavra eterna (Mt 24,35), um amor que nunca falha, uma amizade que não decepciona, uma presença que nunca cessa (Mt 28,20).

Que a bem-aventurada Virgem, "que acolheu em seu Coração Imaculado o Verbo de Deus e mereceu concebê-lo em seu seio virginal" (Prefácio da Missa Votiva de Nossa Senhora, Mãe da Igreja), nos ensine a depositar toda a nossa esperança no Coração de seu Filho com a certeza de que não será frustrada.
(Angelus - 17 de agosto de 1989)


Notas:

RANGEL, Paschoal. Sagrado Coração do Homem. Belo Horizonte: O Lutador, 1993.

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