Que dê sua face a quem o fere e se sacie de opróbrios. (Lm 3,30)Meditação de São João Paulo II:
1. As expressões da ladainha do Sagrado Coração ajudam-nos a reler o evangelho da paixão de Cristo;
Contemplemos de novo com os olhos da alma os momentos e acontecimento da prisão no jardim do Getsêmani:
o julgamento de Anás e Caifás;
a prisão noturna;
a sentença matinal do sinédrio;
o tribunal do governador romano;
o Tribunal de Herodes, o Galileu;
a flagelação;
a coroação de espinhos;
a sentença de crucifixão;
o caminho da cruz até o calvário;
e, na agonia sobre a árvore da ignomínia;
o último suspiro: "Tudo está consumado".
Coração de Jesus, saturado de opróbrios.
2. Coração de Jesus - o coração humano do filho de Deus - sumamente consciente da dignidade de toda pessoa humana, da dignidade de Deus homem.
Coração do Filho, primogênito de toda criatura, sumamente consciente da particular dignidade da alma e do corpo da pessoa; sumamente sensível a tudo o que ofende essa dignidade. "Saturado de opróbrios".
3. Vejamos estas palavras do profeta Isaías:
"Eis o meu servidor que eu sustenho, meu eleito que a minha alma prefere... ele levará o direito às nações. Não grita, não exalta o tom da voz. Não destrói o caniça quebrado, não extingue a chama vacilante..." (Is 42,1-3).
"E as multidões ficaram assombradas à sua vista - tão desfigurado estava o seu aspecto, não tinha mais aparência humana" (Is 52,14).
"Homem de dores, experimentado no sofrimento, como aqueles diante dos quais a gente cobre o rosto. Era desprezado e desconsiderado" (Is 53,3).
4. Coração de Jesus, saturado de opróbrios!
Coração de Jesus, saturado de opróbrios! Sinal de contradição...
"E a ti, ó Maria, uma espada traspassará tua alma" (Lc 2,35).
(Angelus - 24 de agosto de 1986)
Escreve o Padre Paschoal Rangel:
Embora esta invocação contenha um apelo emocional, que o próprio Jesus, segundo o testemunho de Santa Margarida Maria, nos fez nestes termos: "Eis o Coração que tanto amou os homens e deles (da maior parte deles) só tem recebido ingratidão e desprezo" - é bom não insistir demais no sentimental que pode facilmente resvalar para o sentimentalismo e perder a força substancial.
A expressão "saturado de opróbrios" (que significa superinsuflado, ultrajado, ferido em sua dignidade, cuspido, magoado por palavrões e desrespeitos), se encontra no Livro das Lamentações, do Profeta Jeremias (39,30). Estava-se diante de um povo em estado de pecado, longamente entrevado no mal, no afastamento de Deus. A tal ponto era grave a situação que o Senhor, que prometera não abandonar Jerusalém e ser Templo, resolvera entregar a cidade a mãos estranhas, à profanação dos invasores, à destruição; e o povo, o seu povo, à opressão. O impossível, o impensável acontecia. A nação, os sacerdotes, os doutores, os reis, os chefes - todos, espantados, sem poder explicar o que viam, eram tentados pela descrença e pela blasfêmia. Jeremias - que, desde o início, antes da invasão, procurava alertar a todos para a necessidade de conversão, de mudança em profundidade por parte de Israel, escreve os poemas das Lamentações, esforçando-se por explicar o "mistério" e consolar a população.
A elegia do capítulo III é a chave teológica do livro inteiro. Comparece ali, não mais a cidade de Jerusalém ou seu Templo, mas um personagem anônimo, o Homem (e o hebraico emprega um termo raro para falar desse Homem, que não é apenas "ISH", como Adão, mas GÉBER, o "vir" latino, o homem forte, varonil, viril), herói sem nome, porque era o representante do povo, que se entrega, inteiro, à vontade de Deus, que vai submeter-se aos sofrimentos mais horríveis, ele, INOCENTE, com a consciência de que era preciso ir fundo, se deixar destruir em lugar de Jerusalém, para mudar tudo, reparar, reconstruir, a partir de si mesmo. O sofrimento, os "opróbrios", a aceitação da própria aniquilação em nome do povo, o esvaziamento do homem velho... eram o preço a pagar para a salvação de Jerusalém (símbolo do Povo de Deus) e de seu Templo (símbolo da religião, da alma do povo, do povo por dentro). Esse "géber", prefiguração do "Servo Sofredor", era profecia de Jesus Cristo, o Messias sofredor, crucificado, "saturado de opróbrios". Interessantíssimo: a elegia começa, em hebraico, com um jogo de palavras, que mistura, digamos, plasticamente, o "homem" e a "dor".
Assim é Jesus, por destinação divina, pela vontade do Pai. Se Jeremias fora, até então, o profeta perseguido, desprezado, encarcerado, condenado, esse "homem" também o seria. Com uma diferença: a perseguição agora fazia parte do Plano de Javé (Lm 3,1-18).
O Coração de Jesus, saturado de opróbrios, merece nossa compaixão, sem dúvida. Mas merece ainda mais e tem o direito de esperar a nossa com-paixão, quero dizer, a participação nossa no seu sofrimento redentor. O estar-com-Ele, o redimir o mundo com Ele, procurando nós, como Ele, ajustar-nos ao Plano do Pai, isto é que importa.
O nosso horror ao sofrimento, a rejeição à Paixão, a recusa de participar da Cruz é uma tentação moderna, tanto das esquerdas quanto das direitas, para as quais a aceitação da dor é um escândalo ou uma alienação. Mas isto significa, no final das contas, que deixamos de entender o mistério de salvação que habita o sofrimento, o mistério "salvifici doloris".
Notas:
RANGEL, Paschoal. Sagrado Coração do Homem. Belo Horizonte: O Lutador, 1993.
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